A partida da morte

Com a colaboração de Luis Alberto Kid

No final dos anos 30, o Dínamo de Kiev era considerado um dos melhores times de futebol da Europa. Recheado de craques, proporcionava grandes espetáculos contra seus adversários da cidade, como Lokomotiv, CSKA, Dnipro, Metalist e Shakhtar Donetsk.

O campeonato de Kiev foi subitamente interrompido pela invasão nazista em junho de 1941. Os ucranianos foram pegos de surpresa, pois Hitler e Stálin haviam assinado um pacto de não-agressão antes da guerra. Além disso, o ditador soviético considerava o povo da Ucrânia pouco simpático ao regime comunista, e enviou pouca ajuda militar. Coube a população defender sua terra com o que tinham em mãos, armas, enxadas, porretes, martelos, paus e pedras. Foram massacrados.

Alguns jogadores do Dínamo morreram lutando, outros acabaram em campos de trabalhos forçados. Os que sobreviveram passaram a viver como mendigos nos escombros da cidade ocupada pelos nazistas, sem ter o que comer ou onde dormir. Até que um sujeito chamado Kordik, dono de uma grande padaria e apaixonado por esportes, teve uma ideia digna de Oskar Schindler: vasculhou as ruas de Kiev atrás dos jogadores sobreviventes e lhes deu emprego, comida e abrigo. Em pouco tempo, a Padaria Nº 3 de Kiev tinha entre seus empregados 8 ex-jogadores do Dínamo e 3 do Lokomotiv.

Foi assistindo as peladas entre os jogadores nos intervalos do trabalho que Kordik teve uma grande ideia: formar o time de futebol da padaria. Surgiu aí o START F.C., uma equipe de 11 jogadores, sem reservas, sem treinamento, sem condicionamento físico, sem material esportivo (jogavam com calças cortadas e sapatos ou botas), cansados e mal-alimentados. Mas cheios de talento.

Kordik convenceu as autoridades alemãs a retomar as atividades esportivas em Kiev, para “normalizar” a vida da população sitiada. Os jogadores do Start voltaram ao campo de jogo, enfrentando equipes locais. Apesar das adversidades, venceram todas suas partidas aplicando grandes goleadas, com um futebol vistoso e de muita técnica.

Assistir o time da Padaria Nº 3 aos domingos à tarde passou a ser o único alento da sofrida população kievana, cujo moral mudou completamente. O sucesso do Start foi tamanho que o time passou a ser desafiado por equipes de soldados das guarnições invasoras, especialmente húngaros e romenos, aliados nazistas. Mesmo com o cansaço, a má forma física e inferioridade numérica, os craques do Start venceram todas as partidas com larga vantagem.

Os alemães ficaram incomodados. As vitórias do Start passaram a inspirar o povo ucraniano e membros da Resistência, que os enxergavam como heróis. Era necessário dar um basta na onda de euforia. Os nazistas então trouxeram a Kiev sua melhor equipe, o FLAKELF, time da Luftwaffe, composto por atletas fortes e bem treinados, para desafiar o Start.

Foi um jogo duro, violento, com os alemães cometendo faltas desleais não marcadas pelo juiz. Mais uma vez, porém, o talento dos craques de Kiev falou mais alto e os alemães foram goleados. A população local ficou eufórica: seus heróis haviam derrotado os inimigos fascistas! Era como se a honra da cidade tivesse sido recuperada. Resistir era possível.

Enfurecidos, os alemães marcaram uma revanche logo em seguida. Na verdade desejavam fuzilar o time do Start pelo insulto, mas sabiam que apenas criariam mártires. A vitória tinha que ser dentro do campo, e incontestável.

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Cartaz promocional da partida Start x Flakelf, em 1942.

Os 11 craques de Kiev só perceberam o tamanho da encrenca em que estavam metidos quando entraram no estádio do Dnipro no dia do jogo. Em vez de totalmente tomado pela fanática torcida local, como de hábito, mais da metade do espaço estava ocupado por soldados armados da Wehrmacht. Na tribuna de honra, autoridades e oficiais alemães.

O time da Luftwaffe estava reforçado de mais atletas descansados, bem preparados e alimentados, e o juiz da partida era um oficial da SS, que antes do jogo visitou o vestiário do Start e aconselhou os exaustos jogadores que “seria prudente não vencer a partida”. O que colocou os craques de Kiev numa encruzilhada: entregar o jogo e voltar pra casa ou dar seu melhor, vencer a partida e honrar suas camisas e sua terra, e ser fuzilado ou enviado para Siretz, campo de extermínio nos arredores da cidade? Até esse dia, o Start somava 9 vitórias em 9 jogos, 56 gols marcados e apenas 11 sofridos.

Mesmo reconhecendo que sua vitória poderia render graves consequências, o Start decidiu jogar. Ao entrar em campo, a equipe recusou-se a fazer a saudação nazista para os soldados e oficiais de alta patente reunidos no estádio. Como previsto por eles, o árbitro ignorou solenemente os abusos cometidos pelo Flakelf. No primeiro gol dos alemães, o goleiro do Start chegou a ser chutado na cabeça, depois de repetidas faltas.

As contínuas agressões no entanto, não intimidaram a equipe soviética, que continuou desfilando seu talento. Já no fim da partida, com o Start em posição praticamente imbatível devido ao placar de 5 a 3, Klimenko, um zagueiro, recebeu a bola, driblou a retaguarda alemã e contornou o goleiro. Então, ao invés de deixá-la cruzar a linha do gol, ele virou-se e chutou a bola de volta ao meio-campo. O árbitro soprou o apito final antes de completados os noventa minutos.

Essa partida entrou para a história como “O Jogo da Morte”. Pouco tempo depois, todos os jogadores da equipe foram presos e torturados pela Gestapo, sob a alegação de que pertenceriam à NKVD. Um dos presos, Mykola Korotkykh, morreu sob tortura. O restante foi enviado ao campo de trabalho de Syrets, onde Ivan Kuzmenko, Oleksey Klimenko e o goleiro Mykola Trusevich foram executados em fevereiro de 1943.

Entre os poucos sobreviventes após a guerra estavam Fedir Tyutchev, Mikhail Sviridovskiy e Makar Goncharenko, que se tornaram os responsáveis por propagar na cultura popular soviética a história de sua partida contra os nazistas.

Em seu livro Futebol & guerra: resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas, Andy Dougan conta essa incrível, trágica e brutal história sobre extraordinária bravura, valores morais, nobreza, companheirismo, determinação, superação, resiliência, sacrifício, amor pela pátria e acima de tudo pelo esporte. Uma história que inspirou vários filmes, sendo Fuga Para a Vitória, de John Huston, o mais conhecido deles.

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Pelé no filme “Fuga para a vitória”.