
Deu pra mim, deu pra ti, esse baixo astral deu pra todos nós, e é o momento de abraçar os gauchismos, mesmo que sejam tão diferentes entre si como o andar de gazela da Gisele Bündchen e o cabeção do Getúlio Vargas na Glória. Tantas vezes xingado como o mais feio monumento do Rio de Janeiro, eu andei passando por ele nesses dias de radical solidariedade a tudo que soe Rio Grande do Sul e, confesso, cheguei a lançar um olhar sentimental, de profunda compreensão estética, ao cabeçudo dos pampas. “TMJ”, grafitei mentalmente em seu farto narigão.
“Não te fresqueia, índio véio”, deve estar dizendo Paulo César Peréio, o gaúcho de Alegrete morto semana passada, assoprando lá de cima um minuano de esperança e resistência aos que aqui embaixo se desesperam diante de tamanha maldade da natureza. Imagino Peréio pilotando alguma nuvem de torresmo ao lado de socorristas conterrâneos como Érico Veríssimo, Iberê Camargo, Elis Regina, Caio Fernando e principalmente Mário Quintana.
No século passado, ao fim de uma entrevista num acanhado hotel da Cinelândia, Quintana me autografou um livro e, ao “abraço” tradicional da dedicatória, agregou a delicadeza de escrever “a poesia é a descoberta das coisas que eu não sei”, um de seus versos fundamentais. O exemplar sumiu numa mudança, a lembrança jamais.
O brasileiro de maio de 2024 é Grêmio desde criancinha e, parodiando o hino do clube, garante que até a pé iremos, para o que der e vier, pois o certo é que todos estaremos onde o gaúcho estiver. A letra é de Lupicínio Rodrigues. Ele pilota outra nuvem de beleza ao lado de baguais puro sangue como Tarso de Castro, Barão de Itararé, Brizola, Xico Vargas, Everaldo e, por que não?, Teixeirinha, o autor da guarânia “Coração de luto”.
A música foi o maior sucesso de 1960, mesmo ano das bossas novas de “Corcovado” e “Meditação”, de Tom. Teixerinha conta a triste história, real, de como perdeu a progenitora queimada num incêndio, e assim instalou na alma de milhões de crianças o pesadelo de que o mesmo poderia acontecer com a delas. Apavorado, eu desligava o rádio quando começava a tocar o “Churrasquinho de mãe”.
De resto, salve o ilariê da Xuxa, o trovão viril de Nelson Gonçalves, as crônicas da Martha Medeiros, as fotos do Ricardo ‘Kadão’ Chaves, as pílulas de vida do Fabrício Carpinejar, as faltas por baixo da barreira do Ronaldinho e, sem essa de negrinho do pastoreio, salve também a literatura afirmativamente preta de Jeferson Tenório.
São todos trilegais, tchê, assim como o mais carioca deles, um gauchão de cinco metros de altura esculpido em pedra, há 50 anos plantado numa calçada de Laranjeiras. A churrascaria que lhe ficava atrás fechou as portas com a tragédia da pandemia. A escultura ainda está lá, firme e forte. O gaúcho resiste.
Cariocas são bacanas, cariocas são sacanas, mas, bah, só gaúchos são trilegais. Adriana Calcanhotto é. O Veríssimo também. É um guri diferente, que nunca usou bombacha, não gosta de chimarrão, não gosta de lembrar a última vez que subiu num cavalo e, tem certeza, o cavalo também não – mas, fora isso, barbaridade, gauchíssimo. Criou o “Analista de Bagé”, aquele que disse “Deus fez o resto do mundo primeiro e o Rio Grande do Sul quando pegou a prática”. Se um carioca mostrar uma tangerina, Verissimo dirá “bergamota”.
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Coluna publicada em “O Globo”, em 20/05/2024.