“Hecho a mano”

Viajando pelo interior do Uruguai – que, exceto por Montevidéu e Punta Del Este, é um país todo feito de interior –, parei na cidade de San Carlos, em busca de uma das mais preciosas iguarias do mundo, a torta frita: um pãozinho esticado à mão até ficar na forma de uma pizza, furado no meio e frito em “grasa de vacuno”, como dizem os uruguaios.

Parei o carro onde me informaram que eu encontraria torta frita, e o que vi foi uma residência modesta, como era modesta a rua e modesta era a vila onde ela ficava. Na frente da casa, entrando pela porta da garagem aberta, uma pequena fila de três ou quatro pessoas que conversavam como se fossem já conhecidos.

10436341_10207349601407827_7722980861444664837_nChamou-me a atenção uma das pessoas que aguardavam na fila: uma idosa com um carrinho de bebê. Dentro do carrinho, tomando sua dose diária de sol, um cãozinho tão idoso, reumático e cegueta quanto ela. Esta senhora aguardava enquanto a dona da casa fazia uma torta frita para uma outra idosa pobre, que aguardava fora da fila, porque não tinha dinheiro para pagar.

E, para completar o singelo quadro daquela cena, vi na porta da garagem, colada por dentro do vidro com um precário durex, uma folha de caderno arrancada com picote e tudo, em que se liam escritas com hidrocor e sem muito esmero as letras maiúsculas: “HOY TORTAS FRITAS”.

Paguei pela torta frita e levei de brinde a gentileza uruguaia: “- Gracias!”, eu disse. “- Muy amable. Que pases lindo!”, respondeu a senhora.

Aquela folha escrita à mão ficou colada na minha alma como a imagem da simplicidade que estamos perdendo.

Imagine um dono de uma loja, aqui, que colocasse um cartaz escrito à mão: “de segunda a sexta, das 9h às 19h; sábados abrimos das 9h às 17h”. Fora o fato de que, eu diria, trabalham demais, na atual conjuntura o cartaz improvisado não renderia ao lojista a mesma credibilidade de um outro escrito no Word e impresso a laser.

Ligamos a apresentabilidade à respeitabilidade, e, nesse processo, tudo o que é feito à mão acaba assumindo o estigma do que não é dignamente, adequadamente apresentável.

A perda daquela simplicidade começa, por exemplo, quando um professor diminui a nota de um aluno, porque ele entregou o trabalho escrito à mão – por mais legível que esteja.

A caligrafia talvez tenha sido uma parte intermediária nesse processo, na passagem da simplicidade, na qual o que interessa é ser compreendido, e a artificialidade, na qual o que vale é a forma como se apresenta. A caligrafia, embora seja uma admirável arte, é a padronização, a estereotipização da escrita à mão.

Lembro do meu pai fixando na porta do consultório, na hora do lanche, um bilhetinho escrito com impecável caligrafia clássica e caprichosamente plastificado com durex: Já volto. Se você passar na frente do consultório do “doutor” Gilberto em um dia de semana, precisamente às 16h, verá o bilhetinho feito com esmero pendurado na porta.

Conheço pelo menos um caso em que uma pessoa foi humilhada por ter distribuído, para sua festa de aniversário, convites feitos à mão. Foi uma criança, filha de meu primo. A pequena Luiza, então com dez anos, passou o fim de semana fazendo, com a ajuda da mãe, os convites que seriam entregues em mãos aos seus colegas na escola. Na segunda-feira, foi para a aula com os convites, mas sua mãe teve que buscá-la mais cedo, pois, precisamente no horário correspondente ao fim do “recreio”, recebeu um telefonema da escola dizendo que a filha estava aos prantos e não queria mais voltar para a sala de aula.

Relato do ocorrido: ao distribuir os convites para os coleguinhas, eles começaram a rir e dizer que ela era “pobre”, que “não tinha dinheiro nem para comprar convites de verdade”, e que “não iriam a festa de pobre”.

Essas pobres crianças, elas sim pobres – de humanidade – não tinham ainda (ou já não tinham mais) o alcance de imaginação que as permitisse enxergar a amável Luiza no seu domingo de tarde fazendo, um por um, os convites especialmente para cada um deles. Não viam que justamente o convite que elas desdenhavam era um legítimo e autêntico “convite de verdade”.

Na nossa “sociedade do espetáculo”, profetizada por Debord, e que estamos vivendo em plena glória, vale mais o que é comprado. O feito em casa é indigno dessa sociedade. Além disso, para se revestir de importância, deve-se ser inacessível. Cultiva-se um distanciamento entre quem escreveu qum lê. A letra escrita à mão denuncia que ali esteve um ser humano, e pode perigosamente trair a alma de quem escreve, ou pior, pode acusar a ideia de uma precariedade vexaminosa, a tão abominada “pobreza”.

Mas o que é feito à mão, desde o bilhete até a torta frita de San Carlos, tem a marca do ser humano, de uma alma que escorre pelo braço até a ponta de uma caneta.

Quando vejo bilhetes de “já volto” escritos à mão, sinto que ainda somos humanos. E imagino uma folha de caderno arrancada com descuido, onde se lê escrito de improviso: “HOY CALOR HUMANO”.