Amigas e amigos, se somos verdadeiramente humanistas e identificados com o processo civilizatório, nossa condenação ao terrorismo precisa ser inequívoca e incondicional.
Sou Cristão (bastante autônomo moral e intelectualmente mas Cristão) e não gosto de ver cartoons que considere agressivos e autoritários (por sua enorme indelicadeza para com os universos alheios), ofensivos à minha fé, como também os muçulmanos têm o direito de não gostarem daqueles que ofendam a sua. Mas não saio matando gente por conta disso e nem ameaçando a integridade física de ninguém. Se achar que algum pasquim é sectário na sua militância ateísta, se achá-lo de baixo nível, não vou comprar, vou ignorar, ou vou falar mal e recomendar que ninguém compre. Se achar que passou gravemente dos limites, tenho a alternativa de buscar meus direitos cidadãos na justiça. Aí se esgotam as possibilidades “divergenciais” em uma sociedade civilizada.
Tenho uma fé adulta e não acho que meu Deus necessite de minhas modestíssimas forças para sua defesa. Não acho que Deus necessite da defesa ou da bajulação de ninguém. Deus não é, em minha visão, um ente egóico, vaidoso e frágil, que deva contar conosco para zelar pelo respeito à sua dignidade. Acho mesmo que Deus estaria se lixando para os cartoons da Charlie Hebdo ou até dando risadas da revolta um tanto pueril e ridícula que expressam.Não podemos fazê-lo “à nossa imagem e semelhança”. Deixemo-lo acima disso, das nossas pobres disputas humanas. Mas tenho certeza de que Ele não ri dos assassinatos, das soluções terminais, da impiedade mortal. Principalmente quando exercidos em seu nome.
Assim, a conduta dos cartunistas mortos NÃO ESTÁ EM QUESTÃO NESTE MOMENTO. Algo bem mais grave do que isso aconteceu.
E, em uma analogia, da mesma forma que seria injusto e não lícito sugerir que as mulheres estupradas são culpadas pelo próprio estupro, por causa das roupas que usam ou por suas supostas condutas provocativas, é injusto e não nos é lícito darmos a entender que os cartunistas e jornalistas mortos estariam, de certa forma, “recebendo o troco” do que provocaram. Compreendem? São danos de natureza, de caráter, de gravidade, muito distintos, inclusive, entre outros fatores, pela sua irreversibilidade.
Em horas como essa, a gente precisa evitar que a bílis ocupe o lugar das sinapses. Como também precisa evitar que a simples ideologia -na sua pior acepção- pulse no lugar do coração.O terrorismo, seja de que vertente for, ameaça a possibilidade de evolução do processo civilizatório, rompe definitivamente com o diálogo e é terminalmente cruel, irreversivelmente cruel! Esse é o único discurso que se expressa coerentemente pela boca ou pela teclagem de alguém que se considere de esquerda democrática. Ou vamos permitir que o imaginário popular seja cooptado pela extrema direita, por causa da nossa claudicância e confusão?
Lembremos que as pessoas que morreram não são números, não são personagens. Eram gente como nós, com nome e sobrenome, com famílias, com sonhos e afetos, com uma história particular.
NADA, ABSOLUTAMENTE NADA, ATENUA OU JUSTIFICA O CRIME COMETIDO.
Se nos esquecermos disso, estaremos nos esquecendo também da nossa própria humanidade.