Coisas que escuto demais: “Lobato infantilizou o saci”, “Saci NO ORIGINAL é muito mais sombrio do que em Lobato”, etc. Isso quando não vem alguém que realmente se perdeu dizer que o autor do Sítio “inventou o mito do saci”. Continue lendo este artigo para escapar dessa besteira.
De começo: é comum confundir o trabalho de ficção folclórica com de registro folclórico. Folclore é literatura oral, por isso sua forma é imprecisa, plural. Quando se faz literatura é preciso escolher uma versão, então sim, a ficção sempre será limitante. Mas Lobato fez os dois!
Lobato estoura em 1914 fazendo crítica dura ao caboclo com o tipo Jeca Tatu (anos depois ele revê e se desculpa). Com espaço na mídia, começa suas provocações. Em 1916, escreve frustrado com estátuas de gnomos encapotados no calor de SP. Melhor um papagaio, tico-tico… um saci. A crítica vai ganhando corpo até que em 1917 seu amigo, o biólogo Manequinho Lopes, pai do Parque Ibirapuera, faz esta escultura com o saci que ouvia na infância: com três dedos, espora feito galo para trepar nos cavalos, mão furada, orelha de morcego, carapuça vermelha de cuia.
Manequinho fez a escultura em “barro do Poá”, depois referida no inquérito como “Saci Poá”. O epíteto vem da procedência da argila: o município de Poá/SP. Alguns sites por aí leram tudo errado e classificam Saci Poá como um tipo de saci. Explico no artigo “Tipos de Saci?” no blog Colecionador de Sacis.
Inspirado pela escultura, Lobato escreve um artigo no Estadão em que defende que nossos mitos são tão ricos quanto os de qualquer lugar do mundo. E critica: nas bibliotecas se encontram vários tomos de mitos celta, mas nada dos daqui. Folclore local era tido como saber menor… Lobato faz então um alerta muito importante aos que querem escrever sobre folclore daqui: “É-lhes forçoso afundar na roça para consulta verbal ao livro não escrito da crendice popular”. Ir ao outro é uma lição que ainda hoje fundamental para a ficção folclórica.
Como o artigo foi recebido? Muita gente gostou e achou nostálgico, mas o Estadão recebeu muitas cartas dizendo ser um desperdício de papel publicar sobre tão “grosseira superstição popular, dessas que depõem contra os nossos créditos de civilizados perante as nações estrangeiras”.
Engraçado que no 1º. artigo publicado sobre Saci na imprensa, no Correio Paulistano, pede-se até desculpas antes de iniciar o texto. Lobato não. Pega a pilha e vai além! Cria duas convocações: uma para um Inquérito sobre o Sacy e outra pruma Exposição!
A exposição do saci, de 1917, foi a 1ª. vez que um mito nacional ganhava espaço numa galeria de arte. Lembrem-se: todo mundo conhecia folclore, mas era algo “vergonhoso”! Houve pinturas e esculturas incríveis. Quem venceu o prêmio em dinheiro foi Ricardo Cippichia.
E com o Inquérito sim que a brincadeira começa. Em 1917, Lobato escreve para o jornal chamando os leitores para responderem perguntas sobre como era a crença do saci na região e se eles já tinham ouvido histórias dele. Foram mais de 70 depoimentos, compilados em livro em 1918.
O Inquérito é riquíssimo. Seu formato plural plasma não a visão de uma pessoa, mas de um grupo — e está aí o valor. Há depoimentos que debocham do saci, mas muitos que o respeitam. As pessoas foram ao “livro do povo”, conversaram com mascates, amas de leite, parentes para escrever.
No Inquérito temos sacis de tudo que é jeito, e esse foi um grande estudo para Lobato compor a sua versão que estrearia no Picapau Amarelo em 1921. Tem saci com chifre, com perna de aranha, com cabelo ruivo, que virava pássaro…
Curiosidade: Para bancar a impressão do livro, Lobato vendeu publicidade para várias grandes empresas sempre com o saci aparecendo nos traços de Voltolino. Haha, um modelo único! O Estadão tentou lançar no ano seguinte um Inquérito de histórias de caçador, que flopou. Saci é Saci.
Mas voltando a Lobato. Vimos que ele fez do saci um estandarte para uma campanha de valorização artística do folclore. Mas e no Sítio? Era uma versão infantilizada? Na TV o personagem acabou simplificado, por certo, mas na literatura ele também é riquíssimo.
O saci no livro suga sangue de cavalo, tem medo de cruz e várias coisas que nunca foram adaptadas. Também tem filosofa lindamente sobre a origem do medo e a pequenez do humano ante o mito. Quem fala em infantilizar, ponho a mão no fogo, nunca leu o Sítio. Só conhece da TV.
Por fim, lembram o que Lobato disse sobre não haver livro de folclore em biblioteca pública nem pra quem quisesse? Ele dá um jeito nisso. No livro do Saci há histórias inteiras sobre outros mitos tiradas de Barbosa Rodrigues, Simões Lopes Neto… Lobato socializou sua pesquisa.
O que ocorre então? Pelo sucesso literário e posteriores adaptações, Lobato se torna referência. E uma referência tão grande que por anos foi difícil romper com a “norma” e produzir um ficção folclórica diferente. Hoje isso já mudou bastante, mas não foi “culpa” dele.
Para encerrar, sei que vai ter gente lembrando sobre o racismo e eugenia em Lobato. Eu trato disso em dois podcasts: um é monólogo sobre o saci e outro entrevista com sua biógrafa, Márcia Camargos. Não fugimos de nenhuma polêmica.
As artes que usei neste artigo são de vários artistas incríveis. Mikael Quites, Ohi, Berjê, Theodoro Braga e o boitatá de Pedro Fanti. Na Collab a capa é de Azrael de Aguiar, seguido de Rafael Serpentis, Quites e Vee Marques. Na revista de Will Chamorro.
Se gostou do meu trabalho e não me conhece, saiba que eu pesquiso folclore há mais de 10 anos e socializo o que aprendi desde 2015 no site O Colecionador de Sacis e no podcast Poranduba (desde 2018).
Meu trabalho é todo feito na base do amor pelo folclore, mas conta também com o apoio de pessoas queridas que confiam no que faço e assinam um humilde financiamento coletivo recorrente. Considere apoiar em padrim.com.br/saci.