A música feita para o prazer de quem toca

A música de câmara é, por princípio, um tipo de música feita para o prazer de quem toca. O público, embora sempre bem vindo, é escusável. E é bom quando um público vai se formando aos poucos, espontaneamente, se reunindo ao redor de um grupo que está tocando e se divertindo.

Aliás, dizer “público” já é estragar tudo. A música de câmara nunca é pública. É, antes, algo que se compartilha: no olhar de grata concordância trocado com o colega ao lado, sem dizer nada, sobre o quanto é linda a frase que o violoncelo acabou de tocar, no sorriso espontâneo de duas ou três pessoas que assistem, simultaneamente despertado pelo humor de uma coda de Mozart (a “aprovação silenciosa”, que Mozart dizia tanto preferir aos aplausos), e, claro, na imensa conversação musical que brota – e que nunca é tão evidente quanto no repertório clássico por excelência, como em Mozart ou Haydn (Schubert e Mendelssohn, embora românticos, podem ser incluídos, e Brahms, que é calor humano colocado em música).

Um quarteto de cordas a céu aberto, em algum quintal de chácara nos subúrbios de Viena: no primeiro violino, “Papa” Haydn. Na viola, Wolfgang Mozart. Mozart pai recostado numa cadeira junto ao grupo, atento e orgulhoso do filho, enquanto lêem os quartetos dedicados a Haydn. Podem estar bebendo ponche ou licor, enchendo uma taça entre um comentário e outro, uma opinião ou observação sobre determinada passagem… Isso é música de câmara. “Uma conversa entre quatro pessoas inteligentes”, foi a definição de um quarteto de cordas dada por Goethe.

Música de câmara é também quando você está tomando uma cerveja, e uma colega vem e chama você como quem tira pra dançar: vamos ler algum Haydn? E você vai com cerveja e tudo, escolhem o opus 20, alguém diz “sim, eu amo o terceiro, em dó maior!”. Então, depois de dois movimentos de Haydn, chega um colega violista e, com uma viola extra, decidimos tocar o quinteto com duas violas, em sol menor, de Mozart. Entre um movimento e outro, alguém chega com violino na mão e pergunta: “posso tocar esse movimento?” E você levanta e dá lugar e vai buscar outra cerveja e assiste.

Isso é música de câmara.

De músico pra músico.

De portas fechadas e coração aberto.

Precisa de público? Lógico que não. Mas é bom também quando gente se reúne em torno, exatamente como num jogo que se torna mais empolgante quando tem gente atrás de você olhando suas cartas e acompanhando os lances com a mesma expectativa e emoção.