Acordei agora. Quase quatro da manhã e devo demorar para conseguir dormir. Algumas sensações estranhas. Ontem foi 15/03, dia da passeata em todo o país. Permaneci no Laranjal, praia de água doce que tem sido um misto de morada e refúgio. Acompanhei alguma coisa pela internet, redes sociais.
Este movimento tem muitas leituras e eu não gostaria de restringir apenas à minha impressão inicial, que toma as movimentações como manobra de desestabilização do governo, terceiro turno, revival da marcha de 64 ou mimimiday. Acho que temos algo muito maior em curso e sobretudo algumas revelações sobre quem somos. Embora não possamos considerar as manifestações como espontâneas, haja visto a grande antecedência e campanha realizada por meio de comunicação de massa. Mas a participação de pessoas que considero queridas, tais como mães e pais de amigos me revelou – através da afetividade – algo que não havia notado até então. Uma das pessoas queridas postou fotos com a legenda: “Eu fui. Por insatisfação com a impunidade e com o desrespeito das lideranças (três poderes) para com a população”. E a primeira foto mostra o cartaz “Dilma: não é 3º turno nem golpe. É indignação. Saco cheio. Ou muda ou cai fora”.
A legenda e a foto pareceram pra mim uma grande contradição. Primeiro porque demonstram a insatisfação com a impunidade (três poderes) enquanto o cartaz atribui toda a responsabilidade à presidente Dilma. Ou “muda ou cai fora”. Acho que isso revela muitas coisas sobre nós brasileiros. Talvez do ser humano em si. Somos feios. Acho que somos também preguiçosos. Descobrimos como somos feios e não gostamos nem um pouco. Descobrimos a corrupção encalacrada nos três poderes. Descobrimos a corrupção capilarizada na iniciativa privada. Descobrimos a corrupção em nossas relações pessoais. O que antes era escondido, agora tornou-se insuportável. Somos feios, preguiçosos e inocentes também. Inocentes porque talvez não soubéssemos de toda a roubalheira. Talvez hipócritas. Preguiçosos porque restringimos nossa participação política apenas às eleições, lemos apenas o que nos cai nas mãos e em letras garrafais, não nos informamos direito e sequer conseguimos unificar nossos anseios em uma bandeira única, como a reforma política, por exemplo. Neste sentido, é necessário que a imprensa estimule nossa raiva, que seja realizada uma grande greve de caminhoneiros estimulados pelos empresários, que alimentos estraguem nos estoques e fiquemos sem gasolina por um ou dois dias. Soma-se ao fato do dólar subir um pouco e a meta de inflação tenha de ser flexibilizada. Isto depois de ficar sem água em regiões onde isso era inimaginável. A raiva e o ódio surgem naturalmente e é fácil disfarça-los em indignação.
Digredindo mais um pouco. Eis que a Presidência da República não tem mais apenas uma função de governança de estado. Ela contém em si uma carga simbólica muito grande. Talvez aquela saudade da monarquia que todos inconscientemente temos em nossas fantasias infantis. Há poucos dias ouvi uma entrevista do prefeito Fernando Haddad, de São Paulo, avaliando os índices de popularidade de sua gestão. Não moro em São Paulo, mas muitos amigos o consideram o melhor prefeito de todos os tempos. Ouvindo sua entrevista e, apesar da tentativa gritante dos entrevistadores em desqualifica-lo, fiquei muito surpreso com sua postura e acredito que realmente seja uma grande figura. Invejo a cidade de São Paulo por ter um prefeito como ele, ao mesmo tempo em que lamento sua saída do Ministério da Educação. Haddad, naquela ocasião, demonstrou muita tranquilidade ao falar sobre o papel simbólico em ser prefeito de uma cidade como São Paulo, dizendo que o prefeito concentra demandas que muitas vezes extrapolam sua real responsabilidade. “A crise da água, por exemplo – disse ele – também entra na conta do prefeito.” O curioso é que Haddad, ao invés de transferir a responsabilidade, entendeu que a população não está propensa a fazer esta avaliação e que o prefeito deve saber que faz parte de “ser prefeito” lidar com estas reações. Escrevo este breve relato para que possamos pensar sobre o que se espera, no senso comum, de um presidente. Neste sentido, ainda acho que somos preguiçosos e inocentes: queremos pessoas mágicas que resolvam os nossos problemas e não nos deem muito trabalho.
O Partido dos Trabalhadores possui também uma grande importância simbólica. Amigos que participaram da fundação do PT são, hoje, talvez os maiores anti-petistas que eu conheço. Algo como “o PT não podia ter feito o que fez”. E está correto. Ao mesmo tempo, tenho a impressão de que funcionam como ex-fumantes que condenam o vício. É uma grande frustração e demonstra mais uma vez nossa feiúra. Chamo a atenção, apenas, para o fato de que a mesma expectativa que existe sobre um prefeito ou uma presidente, também é atribuída a um partido. E Aqui talvez resida a novidade. O caso PT é emblemático justamente por ser um partido originalmente constituído de pessoas reais que nunca haviam ascendido à condição de gestores públicos. Um bancário que se tornou prefeito de Porto Alegre. Um metalúrgico que se tornou presidente. Neste sentido, nossa inocência em acreditar que se pode chegar ao poder sem entrar no sistema e resolver o Brasil sozinho, nosso ódio ao descobrir nossa própria feiura refletida em alto escalão e nossa preguiça cúmplice, que nos faz entender que simplesmente tirando o mandatário, ou um partido, resolve-se a questão. Outros partidos possuem/possuíram funções simbólicas tão importantes quanto o PT. O PMDB da redemocratização, o PTB/PDT do trabalhismo, para ficar nos partidos de massa que, pelo menos desde os anos 50, alternaram representações diversas do segmento de trabalhadores e movimento sindical.
O termo feiúra que venho utilizando, vale ressaltar, que nada tem a ver com aspecto físico. Estamos falando de nossa feiura moral, a descoberta que podemos tomar sete gols em casa, a descoberta de que não somos mais tão bons assim, e de que realmente queremos levar vantagem e passar a perna. A feiura do célebre diretor da empreiteira que todos fomos educados a admirar e querer ser. A preguiça mora na feiura. E não é preguiça física. É intelectual. Nossa crise é uma crise de classe média. É crise da opinião pública. É, sobretudo, uma ansiedade generalizada em tentar resolver as coisas do dia para a noite. Mais do que indignação, me parece que estamos num processo de negação. O feio é o Outro. As ruas pálidas retocadas de verde e amarelo CBF parecem querer expurgar com ódio a própria feiura, preguiça e inocência. Somos assim. Precisamos de um ícone para representar os males que estão contidos em nossa própria brasilidade. Precisamos de alguém para sacrificar, já que está chegando a páscoa, mesmo. Que possamos renascer menos feios após a Páscoa e que ninguém precise morrer na cruz para purgar os nossos próprios pecados.