Numa manhã ensolarada, um rapaz de vinte e poucos anos cometeu o crime com o qual sonhara desde os dezoito. Local: as torres do World Trade Center.
Levou mais de um ano planejando o golpe. Durante semanas registrou pacientemente o movimento do lugar onde agiria. Anotou tudo num pequeno caderno: logos de empresas estampados nas laterais dos veículos de entrega, números de telefone, horários de entrada e saída de pessoal, uniformes de trabalho. Simulando um aleijão, durante dias passou lentamente diante da porta de segurança que dava acesso à área de serviço do prédio comercial. A rotina era sempre a mesma: fingindo cansaço, parava de andar e apoiava-se nas muletas, enquanto o olho acompanhava os dedos dos funcionários que digitavam o código de abertura da porta. Decifrou a combinação: 7-7-4-3-5. Daí por diante, suas visitas clandestinas ao interior do prédio se tornaram diárias. Finalmente, depois de criar uma empresa fantasma, de forjar documentos e crachás, depois de lograr introduzir ilegalmente no edifício mais de trezentos quilos de material indispensável ao delito, o rapaz burlou pela última vez os sistemas de segurança, passou a noite escondido nas escadas de incêndio e, na manhã do dia 7 de agosto de 1974, cometeu seu crime.
Toda a cidade de Nova York foi testemunha. Wall Street parou. O trânsito parou. As pessoas que chegavam para o trabalho pararam. Mais tarde, o escritor Paul Auster diria: “É muito bom lembrar daquela manhã de 74 em que um rapaz ofereceu a Nova York um presente de beleza atordoante e indelével”.
Durante quarenta minutos, o francês Philippe Petit andou numa corda bamba estendida entre as torres gêmeas, a quatrocentos metros de altura, sem nenhum dispositivo de segurança, nem mesmo um cinto para prendê-lo ao cabo sobre o qual andou, correu, dançou e, finalmente, sobre o qual se deitou para ver o céu.
Hoje, dois anos depois do desaparecimento das torres, na data que assinala nossa entrada num mundo novo, é muito bom poder falar de Petit. Sua façanha é a única capaz de deixar a alma leve quando ouvimos as palavras World Trade Center. Com seu gesto, Petit cometeu o anti-11 de setembro. Um crime lindo, cuja única conseqüência é a memória de um homem que desafiou e venceu o abismo.
Petit descobriu na adolescência suas duas paixões: o funambulismo e os gestos inúteis. A primeira diz respeito à velha arte de andar na corda bamba. A segunda, a tudo o que é intranscendente e gratuito, existindo apenas para si, como a canção que se canta no chuveiro.
Em 26 de junho de 1971, Petit estendeu um cabo entre as torres da catedral de Notre Dame e, para espanto de Paris, passeou de lá para cá e de cá para lá a mais de cem metros de altura. Foi preso logo que desceu. Dois anos depois, em 1973, repetiu o golpe em Sidney, agora fixando seu cabo nas pilastras da ponte que atravessa a baía da cidade. Mais uma vez, decidiu não pedir licença. Foi preso novamente. Sempre julgou que recorrer a pedidos de autorização equivaleria a reconhecer o direito de alguém lhe dizer o que podia ou não fazer com sua corda bamba. Além disso, supôs, acertadamente, que a grande beleza do que faz tem relação estreita com a surpresa, com a possibilidade de que, num dia cinza e trivial, as pessoas que passam pela rua olhem para cima e se deparem com o impossível. Por isso, os preparativos devem ser secretos. Sem o segredo, não haveria aquilo que, por falta de palavra melhor, pode-se chamar de sublime.
“Impossível”
A história começa em Paris, na sala de espera de um dentista. Petit chega antes da hora marcada. Para passar o tempo, pega uma revista. Vira as páginas sem muito interesse. Até que: “Há silêncio. Olho atentamente para uma ilustração e leio e releio um pequeno artigo sobre um edifício incrível cujas torres gêmeas, com 110 andares de altura, vão se erguer sobre Nova York e ‘fazer cócegas nas nuvens’. Então é como por reflexo que pego o lápis na minha orelha e desenho uma linha entre as duas torres — uma corda, mas sem ninguém se equilibrando nela”. Petit acaba de completar dezoito anos.
Dois anos depois, desembarca em Nova York. Pega o metrô e sai na nova estação que serve as torres gêmeas. Enquanto sobe as escadas que desembocam na rua, tenta avistar o topo dos prédios. O pescoço vai se dobrando para trás. Já na calçada, os olhos a um ângulo de 90 graus contra o céu, Petit se apóia na ponta do corrimão e pensa: “Impossível”.
Minutos depois, encontra uma escada de serviço e começa a subir a Torre Norte. Leva uma hora para chegar ao topo. A plataforma de observação ainda está em obras. Petit espeta a cabeça para fora e, através de uma selva de cabos e vergalhões estruturais, consegue avistar a outra torre. Nesse primeiro dia não tem coragem de chegar até a beirada.
Poucos dias depois, chega. Petit e um amigo alcançam o alto da Torre Norte na hora do almoço dos operários. A plataforma está deserta. Petit salta a mureta de proteção e caminha pelo parapeito. Os pés estão a milímetros do abismo. Começa a se sentir à vontade. Equilibra-se numa perna. Dá saltinhos. Vê uma vassoura largada no chão e a equilibra na ponta do nariz. O amigo fotografa.
Daí por diante, visita as torres praticamente todos os dias. Inventa uma revista francesa de urbanismo (Metropolis — Premier mensuel français de planification urbaine et regionale) e consegue ser recebido pelo engenheiro responsável da obra. Petit posa de repórter, e o amigo, de fotógrafo. Pede para acompanhar os trabalhos na cobertura do prédio; solicita, e consegue, entrevistar os operários. Obtém informações sobre horários, hábitos, segurança. O amigo, enquanto isso, com a máquina fotográfica e uma filmadora tomada de empréstimo de outro comparsa, registra todas as saliências da fachada, os pontos onde é possível fixar um cabo.
Certo dia, subindo as escadas, pega um lápis e rabisca a parede. Desenha a fachada da catedral de Notre Dame, une as duas torres com uma linha e escreve: “Notre Dame, 26 de junho de 1971”. Desenha também a ponte de Sidney, e data. Por último, traça o perfil das torres gêmeas e, no lugar da data, faz um sinal de interrogação. Em seguida assina: “Philippe Petit”.
Petit compra um bilhete para um passeio panorâmico de helicóptero por Nova York e pede que o piloto sobrevoe as torres. Do alto, tem a visão da distância que as separa: 42 metros e 6 centímetros. Menos do que uma piscina olímpica.
E no entanto… Certa vez, Petit sai do metrô e quando alcança a rua sente um vento no rosto. Ao chegar no alto da torre, encontra uma borrasca. Tenta respirar sem pôr a mão diante do nariz. Não consegue. Tenta andar ereto sem se apoiar. Impossível. Agarra-se a uma pilastra e se deixa levar pela ventania. Os pés saem do chão. Petit fica na horizontal. O amigo fotografa. A quatrocentos metros de altura, os ventos chegam de supetão. A névoa também. Petit sabe que, no meio de sua travessia, pode subitamente deixar de ver a torre da qual partiu e a torre para a qual está indo.
Mas o problema maior é o balanço da estrutura. Petit consulta um amigo engenheiro. “Tanto uma ventania como uma súbita mudança de temperatura forçarão a estrutura metálica a se expandir ou a se contrair, um fenômeno que chamamos de oscilação harmônica. A tensão no cabo passará instantaneamente de três para 3 mil toneladas. O cabo simplesmente explodirá, e você com ele.”
Na França, Petit havia se aconselhado com seu mentor, Rudy Omankowsky, ou Papa Rudy, o maior especialista do mundo em corda bamba, criador da companhia Les Diables Blancs, a famosa trupe de equilibristas da Tchecoslováquia. Depois de ouvir o projeto de Petit, Papa Rudy recomendara vivamente o uso de um cinto de segurança. O pupilo se negou: “Não posso, nunca farei… isso”. Papa Rudy segurou as mãos de Petit e disse: “Não pense que não compreendo. Eu sei. Você quer fazer algo… algo… bonito”.
O primeiro passo
Petit acorda de sobressalto às três da madrugada. Durante o sono, decidira a data — 7 de agosto — e o ponto de partida: a Torre Sul. Ao dar o primeiro passo, terá o mar atrás de si, e Nova York acordando diante dos olhos.
Nos dias em que não visita as torres, faz malabarismos nas escadarias da Biblioteca Pública. É tão bom que chama a atenção dos telejornais locais. Aparece na televisão. Avisa que está planejando caminhar na corda bamba entre dois prédios da cidade, mas não diz a hora nem o local.
Uma produtora de cinema fica deslumbrada com os malabarismos dele. Aborda-o na rua e diz que está formando o elenco de um filme estrelado por Dustin Hoffman. Pede que Petit vá até a casa de Hoffman. Petit vai e Hoffman o convida para participar do filme. Petit agradece, mas declina. Avisa que está planejando uma travessia clandestina pelo topo dos prédios da cidade. Hoffman se anima e sugere: “Deixa eu te dar uma sugestão. Por que você não tenta atravessar as torres do WTC?”. “Aqueles dois prédios gigantes no sul de Manhattan?”, ele responde com cara de sonso. “Puxa, quem sabe…”
O apartamento que alugou vira um aparelho. Petit e os amigos dormem no chão. No centro da sala há uma maquete do World Trade Center. Nas cadeiras e na mesa estão espalhados os crachás falsos, os documentos apócrifos e as fotografias tiradas ao longo de meses de planejamento. Um colega de Petit, fazendo-se passar por estudante de arquitetura, recebera pelo correio um pacote da empresa de engenheira Emery Roth & Sons, construtora das torres, com a planta detalhada de cada um dos 110 andares do WTC. Os desenhos cobrem as paredes. Petit conhece cada milímetro das suas torres. Precisará desse conhecimento no dia 6, quando terá de se orientar pelas escadas e corredores escuros da Torre Sul. Passará a noite escondido, e às cinco da manhã começará a armar o equipamento.
Na semana do golpe, fica o dia inteiro na frente da TV tentando acompanhar os boletins meteorológicos, sem êxito. Petit raciocina no sistema métrico. Graus Fahrenheit e milhas por hora o confundem. Além disso, os boletins são muito rápidos e seu inglês é precário. Quando tenta anotar as informações, elas já desapareceram da tela. Desiste. Decide acordar no dia e olhar para o céu.
Na véspera, organiza a falsa entrega. Alguns meses antes, conseguira o apoio de um empresário que o abordara depois de tê-lo visto na televisão; por sorte, o homem acabava de transferir seu escritório para a Torre Sul. Petit embala o material como se fosse uma remessa de aparelhos eletrônicos e deposita o volume no gabinete do amigo. Em seguida, esconde-se num túnel de ventilação da escada de incêndio e vai dormir.
São mais de trezentos quilos de equipamento. Petit e um único amigo terão que transportar tudo até o topo. O último trecho da subida — o lance de escada que leva à plataforma de observação — terá de ser vencido no muque. Só o cabo de aço pesa duzentos quilos. Para tensioná-lo, Petit usará uma catraca hidráulica capaz de impor ao cabo uma resistência de três toneladas. A vara de equilíbrio pesa 25 quilos e mede oito metros. Está dividida em quatro partes, cada uma acondicionada em seu cilindro. Há ainda os cabos chamados “cavalettis”, cordas que pendem do cabo principal e apontam para o chão. Sua principal função é reduzir as vibrações na superfície da corda bamba, mas também desempenham um importante papel psicológico: ao delinear uma forma tridimensional no abismo, amenizam a sensação de vazio. Petit escreve: “O equilibrista sábio é aquele que distribui seus cavalettis com prudência”.
Às quatro horas da manhã do dia 7, Petit e seu amigo acordam e começam a levar o equipamento para o topo. Dispõem de apenas três horas para aprontar tudo. É indispensável que a caminhada tenha início antes do primeiro operário chegar. Caso se atrasem, o golpe terá fracassado e não poderá ser repetido. Assim que o cabo começar a ser tensionado, estará à vista de qualquer policial de rua que olhe para o alto. Petit terá poucos minutos para instalar os cavalettis e dar o primeiro passo.
Tão linda como a ousadia da caminhada é a poesia da instalação da corda. Como estender clandestinamente um cabo de duzentos quilos entre os dois prédios mais altos do mundo? Petit e seus amigos discutiram o problema durante meses. É o detalhe mais crucial de toda a aventura. Concluíram logo no início que a tarefa principal seria fazer chegar à outra torre uma corda que depois pudesse ser puxada, trazendo a reboque o cabo de aço. Alguém sugeriu amarrar a ponta da corda numa bola de tênis e em seguida dar uma raquetada na direção da outra torre. Surgiu a idéia de um chute preciso numa bola de futebol. Talvez um golpe firme numa bola de golfe. Pensou-se numa máquina de disparar discos de tiro ao alvo e em catapultas. Até que alguém propôs: “Que tal um arco-e-flecha?”.
Às cinco horas da manhã do dia 7 de agosto, uma flecha parte da Torre Norte, descreve uma parábola no céu e aterrissa no topo da Torre Sul. O cabo começa a ser puxado, e antes de ganhar a tensão adequada assume diferentes formas. Todas lembram um sorriso. As formas têm nome: são as curvas catenárias. Petit pára e admira seu cabo, esperando o momento em que ele desenhará a catenária que julga mais bonita. “Então, sorrio de volta”.
Finalmente, com o sol já alto, Petit apóia o pé esquerdo nos 25 milímetros de diâmetro do cabo. A sola do pé está viva, tateia cada palmo do aço, entende a superfície. O peso do corpo desloca-se da perna direita para a esquerda — Petit já se sustenta apenas no cabo —, o pé direito passa adiante do esquerdo. Petit não tem mais chão, pelo menos não aquele que conhecemos, de duas dimensões, frente e lado. O terceiro passo o coloca além do parapeito.
“Ao meu redor, nenhum pensamento. E todo o espaço do mundo.”
Petit chega ao outro lado, e volta. No meio do caminho, ajoelha-se para a multidão que, na rua, está hipnotizada com o que vê. Vai se sentindo à vontade. Corre e dança. Um Boeing passa acima de sua cabeça, e se afasta. Por um momento, Petit tem a impressão de que, esticando a mão, tocará a fuselagem. Quando se deita para ver o céu, o cabo correndo ao longo de sua coluna, descansa a vara no peito e solta os braços no abismo. Levanta-se, vai e vem.
Dos dois lados, nas duas torres, policiais começam a gritar. Um segurança se atira sobre a catraca. Desesperado, o amigo de Petit avisa que qualquer mudança na tensão do cabo matará o equilibrista.
Petit decide terminar. Como número final, faz a “promenade”: apóia a vara no ombro, solta uma das mãos e caminha como um camponês que voltasse de um dia na lavoura.
Petit é preso. Na delegacia, rouba as chaves do policial e solta as algemas. Quando reparam, está equilibrando um quepe na ponta do nariz. Mais tarde, aparece em todos os programas jornalísticos da televisão. Recebe convites de Hollywood. Declina. Querem contratá-lo como garoto-propaganda de carros, biscoitos, lançamentos imobiliários. Recusa todas as propostas. Os jornalistas perguntam: “Por que você fez isso?”. Petit responde: “Quando vejo três laranjas, faço malabarismos. Quando vejo duas torres, eu ando”.
No dia seguinte, Nixon renuncia à presidência dos Estados Unidos, mas hoje, e em cada 11 de setembro do futuro, isso não terá tanta importância assim. Mais importante é Petit e a contramemória de um outro espetáculo, oferecido no mesmo cenário, num dia igual de verão, em que as pessoas também se espantaram, mas com a beleza, em que os aviões seguiram adiante, como devem, e em que um homem desafiou o bom senso, para alegria de todos.
Até a queda das torres, o visitante que subisse as escadas do WTC ainda podia ver o desenho que o maior equilibrista de todos os tempos riscou na parede, anunciando o mais bonito crime da história.
(Os trechos citados e as fotografias são do livro To reach the clouds, de Philippe Petit, publicado pela Faber&Faber em 2002.)
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Texto publicado no falecido portal NoMínimo, em 11 de setembro de 2003