Os últimos dias mostraram a nós, portoalegrenses, a face mais obscura de nossa sociedade atual. Superficialidade, ódio, negação, comportamento em manada e falta de empatia vieram à tona num formato que remete dolorosamente a capítulos sangrentos da história.
“Wehret den Anfängen”, diziam os alemães no pós-guerra. “Combatei os primórdios”, admoestava a sociedade dizimada pelo ódio. Aqui, acompanhamos com perplexidade o surgimento de novas origens de terror, manipuladas politicamente por atores que provavelmente não têm noção da caixa de Pandora que tentam abrir.
Arte, ciência e espiritualidade derivaram do desenvolvimento da fluidez cognitiva humana e nos diferenciam, há quarenta mil anos, de todo o resto do reino animal. Não muito, mas o suficiente para que conseguíssemos produzir obras-primas da capacidade cognitiva como foguetes espaciais, a vacina para a pólio e, antes de mais nada, uma sociedade democrática em que substituímos a lei do mais forte pela cooperação em larga escala. Sem cooperação, não somos nada. Sem altruísmo e empatia à distância, não teríamos o mundo que temos hoje.
Nas ciências biológicas, gostamos de dizer que a “ontogenia imita a filogenia”. Ou seja, que nosso desenvolvimento individual imita a evolução da espécie. Isso é o caso para padrões de movimento e comportamento. E assim, a criança que inicia somente sabendo comandar emoções básicas e toscas como medo, alegria, nojo, tristeza ou raiva aprende, com o passar dos anos, a utilizar o córtex cerebral, como um diamante que vai sendo polido aos poucos. A parte do encéfalo que nos diferencia como espécie inicia a pensar, abstrair, simbolizar e conseguir produzir um raciocínio mais elaborado do que aquele que nosso sistema límbico réptil, o das emoções primitivas, do “comer ou ser comido”, produz.
Visitar uma exposição requer tal parte aguçada do cérebro com que a evolução nos presenteou e que está ali, esperando para ser usada, em cada um de nós. Requer a competência de abstrair, de refletir, de contemplar, do esforço em compreender contextos e ler símbolos.
Ler um jornal ou passar pela linha do tempo de uma rede social não o requer. O aglomerado de informações pode ser digerido sem passar pelo crivo da nossa razão. Informação não é conhecimento, e muito menos sabedoria. Para digerir informações, bastam as cinco emoções primitivas.
Quando esses mundos confluem, o conflito acontece. Querer simplificar arte é algo que só pode dar errado. Transpor o conteúdo de uma exposição para uma foto no Facebook, manipular sua interpretação e distorcer o contexto são erros grotescos.
Numa analogia, estamos presenciando a teoria da terra plana, mas aplicada ao espectro artístico. Enxergar uma apologia à pedofilia numa obra que critica acidamente nosso passado colonial histórico é uma distorção repulsiva e grosseira. É negar o aquecimento global porque “o inverno foi frio’. É torcer o nariz para evolução porque o pastor disse que “a terra tem seis mil anos”.
Mais do que isso: distorcer as obras contidas na mostra é ridicularizar as minorias que possuem nelas um ouvido atento, um dos únicos ouvidos que lhes são permitidos. É negar a sujeira de nosso passado, querendo higienizar nossos livros de história. É fazer de conta que os problemas que não enxergamos não existem. Tal qual a criança que tapa os olhos com as mãos e diz “mamãe não me vê!”, fazemos de conta que problemas não existem.
Se não tematizarmos pedofilia, zoofilia, violência sexual, crimes motivados pela diversidade de gênero ou etnia, eles não existem, e o Brasil é santo.
Neste contexto, MBL, Patriota e consortes parecem estabelecer-se como o partido Peter Pan – representando aqueles que se recusam a crescer. Sua gana de manipulação para aproveitar-se de pensamentos simplistas de forma deliberada, no entanto, é pior. É maléfica, sociopata e abjeta.
Está na hora de deixarmos de ser crianças. Já passou o tempo do recreio.
A preguiça de crescer, desenvolver empatia e conhecimento assemelha-se à preguiça em se movimentar e alimentar-se bem. E assim, nosso cérebro fica confinado a deitar no sofá e comer batatas-fritas, comportamento muito mais cômodo do que a utilização de nossos recursos cognitivos.
Não há desculpas para permanecer na eterna tmente infantilizada nos dias de hoje. O acesso ao conhecimento é universal, as redes sociais promovem contatos valiosos. A única coisa que de fato impede o crescimento é a falta de modelos.
Assim como crianças órfãs, filhas de pais ausentes, faltam à sociedade modelos de pessoas pensantes. Assim como a criança que, por ser baixinha e não conseguir ver o que acontece no desfile, que não tem alguém que enxergue o que acontece à frente e ao redor, faltam-nos mentores de raciocínios complexos, de horizontes abertos que conseguem enxergar além de um pitoco, e conseguem compreender o mundo além do limite do próprio quintal.
Quem está precisando de uma professora que guie, que explique, que contextualize, que tenha paciência de esclarecer as dúvidas mais básicas sobre a “exposição Brasil” não são nossas crianças. São os adultos do Brasil de hoje.