O escritor argentino Jorge Luis Borges poderia ter morrido atropelado em uma rua londrina por uma brincadeira do colega cubano Guillermo Cabrera Infante nos anos 70. Uma noite os dois caminhavam juntos na direção da praça Berkeley quando o escritor cubano, suspeitando que o colega argentino não era um cego verdadeiro, mas apenas um farsante para “emular Milton e Homero”, decidiu deixar Borges sozinho no meio de uma rua com intenso tráfego de automóveis. Os táxis e carros esquivavam o autor de“Ficções” e “O Informe de Brodie”, enquanto este – sozinho – continuava lentamente atravessando a rua.“Borges estava impassível, talvez devido à sua condição de discípulo do (bispo e filósofo George)Berkeley. Isto é, já que ele não via os carros, estes não existiam. Corri para resgatar Borges e o levei a um lugar seguro”, explicou posteriormente Cabrera Infante.
Este causo – junto com outros 332 – foram recopilados pelo escritor e jornalista argentino Mario Paoletti em “O outro Borges – Anedotário completo” – recém-lançado em Buenos Aires pela editora Emecé. A maior parte dos “causos” mostram as irônicas opiniões – e atitudes – de Borges sobre religião, literatura, política e religião, entre vários outros assuntos. Segundo Paoletti, nenhum outro escritor no mundo hispano-americano gerou tantos “causos” como Borges. “Não é impossível que isto se transforme em um subgênero literário”, diz.
BLEFE – No livro, Paoletti conta duas cenas vistas pelo escritor Blas Matamoros nos EUA com Borges. Em uma delas, uma pessoa diz ao escritor argentino: “Borges, o senhor é um blefe”. Borges respondeu:“sim, mas leve em conta que é involuntário…”.
Na outra cena um estudante contestador grita ao escritor: “você, Borges, está morto!”. Borges retrucou: “é verdade, só existe um erro nas datas”.
DEUS, A VIRGEM E O MOTOR – O editor polonês-americano Walter Bara, da editora McGraw-Hill conta a Borges que havia estado em um avião que quase estatelou-se no chão porque um de seus motores havia desprendido da fuselagem. No entanto, depois de uma vertiginosa queda, o piloto conseguiu equilibrar o avião e aterrissar. Bara cumprimentou o piloto efusivamente. Mas, os outros passageiros ficaram zangados com ele, já que atribuíam a salvação de suas vidas à uma medalhinha da Virgem Maria que uma das passageiras pegou em sua maleta quando o avião caía. Borges ouviu o relato e comentou: “isto é, Deus havia ordenado que o motor se soltasse e que eles morressem. Mas, graças a um apelo à Virgem, intervém um subalterno de Deus (a Virgem em questão) e muda os planos. Como alguém pode pensar assim?”.
Borges empunha um pequeno punhal para uma cena de um documentário rodado nos anos 70 na Argentina. Para ver o trailer desse documentário, “Borges, um destino sul-americano” (no 1:21 min. está a imagem acima), clique aqui.
SINCERIDADE E CALOR – Em um dia de calor sufocante Borges chega à casa do amigo e escritor Adolfo Bioy Casares, na elegante rua Posadas, no bairro da Recoleta, para almoçar (costume que manteve durante décadas, todos os dias). Os almoços eram embalados por conversas sobre filosofia e literatura. Mas, ao entrar, cumprimenta o amigo e diz: “o calor é o assunto natural. Sejamos sinceros: falemos sobre o calor”.
LUGAR ERRADO – Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo (mulher de Bioy) e Borges vão a um velório. Mas, não encontram a casa. E de quebra, não lembram do nome do morto. Outro dia, o trio vai a um lugar onde Borges terá que proferir uma palestra. No entanto, entram, por engano, na casa errada, onde está sendo celebrado um casamento. Cumprimentam todas as pessoas e só percebem que a conferência não é ali quando os noivos aparecem.
SINCERIDADE E ESTADO – Durante uma entrevista à revista portenha “Siete Días” em 1973 o jornalista conversava com Borges sobre as modalidades de Estados.
– Sr. Borges, que tipo de Estado desejaria?
– Um Estado mínimo, que não fosse notado. Morei na Suíça cinco anos e ali ninguém sabia o nome do presidente.
– A abolição do Estado que o senhor propõe tem muito a ver com o anarquismo.
– Sim, exato, com o anarquismo de Spencer, por exemplo. Mas não sei se somos suficientemente civilizados para chegar ali.
– Acredita seriamente que tal Estado é factível?
– Evidentemente. Mas, uma coisa é verdade: será preciso esperar 200 ou 300 anos.
– E enquanto isso, Borges?
– Enquanto isso a gente se f…
SER OU NÃO SER – O livro conta que em uma ocasião o poeta Eduardo González Lanuza, amigo de Borges desde a adolescência, caminhava pela rua Florida, em pleno centro portenho, quando repentinamente vê o autor de “O Aleph” sozinho, no meio da multidão que caminha apressada. Borges, cego, estava com sua bengala no meio-fio, esperando para atravessar a rua. O poeta coloca a mão em cima do ombro do amigo e diz: “Borges, sou eu, González Lanuza”. Borges gira a cabeça e após uns segundos, responde: “é muito provável”.
GASTRONOMIA – Paoletti relata que em uma entrevista em Roma um jornalista europeu tentava colocar Borges em uma situação constrangedora. Mas, como não conseguia, recorreu a uma pergunta que considerou que seria muito provocante: “em seu país ainda existem canibais?”. Borges, imediatamente, respondeu: “já não existem mais… devoramos todos eles”.
SÉCULO – Um jornalista entrevista Borges em Paris em um estúdio de gravação. Em meio à conversa, o jornalista pergunta a Borges:
– O sr. percebe que é um dos grandes escritores deste século?
Borges fica quieto durante uns segundos e responde:
– É que este foi um século muito medíocre…
METAFORICÍDIO – O livro também conta como Borges um dia foi ao banco, onde uma funcionária lhe disse: “embora eu saiba (de memória) qual é seu saldo bancário, vou verificá-lo, pois não gostaria de dizer uma coisa e que seja outra”. Borges depois relatou ao amigo Esteban Peicovich: “essa senhorita acabou de assassinar a metáfora”.
CASTELO – Paoletti também conta – baseado no relato do poeta José Bergamin – que nos anos 50 Borges foi à Montevidéu para uma série de conferências. Mas, antes de iniciar, começou a colocar sobre a mesa uma pilha de livros. No entanto, ao longo da palestra, não usou nenhum dos livros ali colocados. Ao terminar a conferência Bergamín aproximou-se de Borges e perguntou qual havia sido a utilidade de tantos volumes que não consultou. Borges respondeu: “eu os uso como ameia”.
Borges, ilustrado pelo cartunista uruguaio Alberto Breccia para o comic “Perramus”, no qual o escritor envolve-se em uma delirante trama política-policial de realismo fantástico.
PREMATURA – Anos antes da morte de Borges em 1986 na Suíça, os jornais franceses, além do New York Times, publicaram a notícia de que ele havia morrido. Preocupado, o ensaísta Ulysses Petit de Murat tentou entrar em contato Borges, até que conseguiu encontrá-lo e confirmar que estava vivo. Murat expressou a Borges seu desagrado pela “notícia apócrifa de sua morte”. Borges corrigiu: “apócrifa não…somente prematura”.
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Ao ler estes relatos do famoso escritor argentino, não pude deixar de lembrar de um belo livrinho de causos do nosso querido poeta Mario Quintana. Organizado por Juarez Fonseca, ORA BOLAS é subtitulado “o humor de Mário Quintana”. De fato, são 130 historinhas com várias sacadas do poeta. Uma delas, fala de Borges:
PRIMO BORGES
Um amigo de Mario viajou para Buenos Aires e foi visitar Jorge Luís Borges na Biblioteca Nacional. Conversa vai, conversa vem, falaram no poeta brasileiro e Borges disse que já havia lido alguma coisa dele. O amigo mencionou o nome completo, Mário de Miranda Quintana. Borges interessou-se: “Então é meu parente, eu tenho Miranda na família”.
Quintana, claro, ficou sabendo da história. Quando Borges morreu, ele comentou com Sérgio Faraco: “Morreu feliz, morreu pensando que era meu primo”.