
Vou escrever algumas notas aqui sobre a série Ruptura, que talvez soem um pouco antipáticas, mas adianto que gostei muito da série. Entretanto penso que ela joga com um mecanismo prestidigitador (como os ilusionistas de playground) que consiste em fazer parecer que há uma verdade ou um sentido decisivo no fundo ou fim da trama – mas, quando lá chegamos, há nada.
A verdade é que o decisivo da série está na superfície, na própria tessitura da trama e em sua magistral construção formal. Sempre se pode, é claro, interpretar essa obra via psicanálise ou crítica ao capitalismo, já que a sua premissa narrativa é a divisão do eu e as fronteiras entre trabalho e vida privada. Mas insisto: seu verdadeiro jogo é formal, o outie da obra é um resíduo.
Formalmente falando, então, o que acontece é que o princípio da divisão do eu entre innie e outie tem uma capacidade generativa infinita. Como na linguagem binária dos computadores – de que a série extrai seu princípio, numa notável isomorfia – infinitas combinações podem ser diparadas a partir da mera oposição inicial. Dentro e fora, claro e escuro, eu e duplo, memória e esquecimento, poder e opressão, terno e moletom – esses pares opositivos se misturam e produzem situações a todo o tempo desconcertantes, convocando a interpretações que, contudo, no fim das contas, acabam por ser decepcionantes, porque a matriz generativa é sobretudo formal.
A realidade é radicalmente abstraída para que a série possa funcionar: como nos textos de Kafka, não sabemos onde estamos, nem em que época (a série é retrofuturista, meio anos 1980, meio distopia a la “singularity”), e nem o que está no fundo das coisas. Só que, diferentemente de Kafka, essa abstração não encerra uma crítica social poderosa (no caso, à emergência difusa do totalitarismo na Europa dos anos 1920). Ruptura constrói uma trama que nos instiga o tempo todo a ir adiante. Mas nada há no fim.
As cabras, por exemplo, não são uma peça importante do quebra-cabeças, mas um recurso visual potente que, quando revela sua função na trama, mostra-se uma bobagem. É por isso que, lá vem spoiler, a série termina com Mark e Helen correndo em círculos, como os versos da canção da cena.
Enfim, Ruptura não é um código hermético, é uma superfície circular, seu jogo é sobretudo formal, como em toda uma vasta e importante linhagem de obras modernistas ou pós-modernistas.
Eu avisei que soaria antipático, mas isso também é uma pista falsa: admiro imensamente a construção formal da série, um êxtase estético metastático, para finalizar com uma paronomásia ao gosto dos cultores da forma pura.
__
Texto originalmente publicado no Instagram do autor: https://www.instagram.com/p/DH_WFKnpqsi/.